14 de abril de 2014

CARPE DIEM


(I)


Acordo

todas as manhãs

e mesmo nas manhãs mais iguais

e dentro dos gestos mais antigos

há o olhar que reconhece o corpo desabitado

a cama e o naufrágio

e já possuo até a ternura do hábito.



Espanto a zonzeira de alguns sonhos poucos

conserto a mulher de alguns sonhos muitos

e é o mesmo pé

ou a variação de um dos dois pés

para fora da cama e do sono que teima

em concorrer no festival.



E espero a notícia

a denúncia vazia

a renúncia vazia

a hora certa nacional:

meu coração não confere.



Vacilo e me escrevo o resto da poesia de ontem

nos muros

nas folhas

papoulas

nas margens possuídas dos rios sombrios

nos guichês nas roletas

nos terminais da avenida

nos pontos parados

pretos ponteiros

relógios

das eternidades do dia.


(II)


Abrir a janela e verificar:

é o mesmo sol das sete horas

ou são as mesmas sete horas do sol de ontem?

O ornato solar

o sol-pôr

o solstício

o solífugo

o solário

o solcris

o solilóquio

a solidão

a solvência

a solução

a solidez

o solavanco

o solo

o sol-e-dó.

Bem-te-vis brasiliensis, where the sabiá sings?


(III)



Os ruídos lá fora avisam das coisas acontecendo.

O panorama da normalidade mostra proprietários

aquecendo os veículos da comunicação

criancinhas que as mamães oferecem aos raios ultravioletas

o carteiro adiantado premiando com futuras insônias

aqueles que ousam ter residência fixa

a porca miséria

o jornaleiro que faz da manchete do dia

o samba enredo vencedor do próximo carnaval

as mansardas de mau-gosto

dos sócio-políticos homens de mau cheiro

o sêmen da madrugada escorrendo pelas tabelas falíveis

o som industrial

liquidificadores, batedeiras, enceradeiras, campainhas, buzinas, rádios, vitrolas, descargas, barbeadores, elevadores, apitos, aspiradores, secadoras, lavadoras vibradores.

O condomínio lê o jornal

numa simultaneidade adivinhada entre paredes.

Comenta-se entrelinhas a crise histérica da vizinha do 301

que culminou com a bicicleta da filha atirada janela afora

uns e outros discutem acaloradamente

sobre atitudes evidentemente anti-econômicas.

Penso sobre as catacumbas

se esta cidade deveria ou não ser subterrânea

o que talvez não fizesse nenhuma diferença

o que dá um certo sossego.



(IV)



A respeito do enjôo matinal nada a fazer.

Decididamente, café e pasta de dentes

nunca tiveram nada a ver entre si.

Mas pior é o espelhinho

aquele que fica logo acima da pia do banheiro

esse agente da CIA incorporado à náusea cotidiana.

Não se vê nele nada além da fotografia

que ilustra a cédula de identidade.

E ele te cospe crimes, antecedentes criminais

e ainda te diz a idade do criminoso.



É preciso que vistas um vestido amarelo,

ordenes teus pelos e batas a porta,

rápida,

atrás.


(V)



Doce ilusão pensar que inverteram as setas

ou os destinos da nação.

A cidade, se não sonhou, pelo menos dormiu.

As placas indicam a mesma contramão

as vias principais geram engarrafamento das soluções.

Pedestres atravessam as ruas nas faixas demarcadas

a segurança pressupõe continuidade.

Há ainda um certo torpor, tamanha manhã ensolarada

afronta os sonados, mas acostuma-se.



A cidade é um formigueiro:

os homens pacientes

os homens decentes

os homens dementes

os homens dirigentes.


O lixo é recolhido.



(VI)



Dizer ou não dizer bom dia?

Selecionar bons-dias?

Grunhir bons dias?

Desejar bons-dias aleatoriamente?



Mas oferecer um sorriso de solidariedade

à meninada que pegou o bonde andando.



O trânsito está congestionando pensamentos

alguém diz um palavrão, ninguém se ofende

viva a impermeabilização moral da nova civilização.



O menino de deus avança em minha direção

você ama a Deus? não, eu amo Reich

o sinal abriu verde

o menino ainda tenta eu te amo

mas eu não te amo, cara!

:que desenho fariam as crianças se lhes tirassem a cor verde?


(VII)




o homenzinho de estatura medíocre

conseguiu a última vaga que havia no estacionamento

sua expressão solene registra a vitória

que abre o placar do dia

o homenzinho despe uma das oito peças do seu vestuário

o homenzinho alcança o orgasmo no exato momento

em que bunda e couro marrom da cadeira giratória se encontram

o homenzinho ensaia a face

que vai ser usada durante o exercício

o homenzinho é um self-made-man

o homenzinho foi dono de matadouro em sua cidade natal

o homenzinho progrediu por causa do elevador

o homenzinho agora assina milhares de papéis

timbrados com o selo da organização

o homenzinho usa comprimidos sublinguais

o homenzinho xeroca um extenso curriculum vitae

o homenzinho marca reuniões

o homenzinho não deixa transparecer filosofias

apenas preferências

o homenzinho não presta declarações

formula hipóteses.


O dia é longo e o tempo tripudia.



(VIII)



Uma sexta-feira qualquer do calendário oficial

e o esforço

de pensar sobre a transitoriedade das coisas.

Não ler pensamentos de almanaque

não prolongar contatos com as caricaturas

não legitimar.

E principalmente não acreditar nas sete vidas do gato

ou mesmo nas botas de sete léguas do mesmo gato.

Os cordeiros de deus não tiram os pecados do mundo

o senhor não é bem pastor e tudo falta

a convivência com o relógio de pulso ou de ponto pode ser fatal.



Sabotar a metodologia?

São dez ofícios e um poema?

Não, é apenas a exceção da poesia.



(IX)



Os marcadores do tempo:

hora do angelus

ora pro nobis

ave-maria-no-morro

apitos.


Andaimes despencam

uma física agressiva mexe com as pessoas

as pessoas antecipam mais um fim-de-semana

as pessoas sonham com domingos mornos

as pessoas tramam o ócio.



(X)



A cidade oferece um espetáculo épico.

Dois heróis do trânsito deram a vida

pela indústria automobilística

aumenta a produção nacional.



A massa é transportada como gelatina estúpida,

os olhares vitrificados começam a derreter-se

no breu da anunciação do caos.



É afixado um cartaz de perigo na porta do mundo

todos os sujeitos chamados raimundo

perdem a senha da rima

os que são:

equilibristas

malabaristas

trapezistas.

A ginástica de uma serra elétrica viril

é confundida com as profecias

esperanças de tantas dívidas

e tantos santos a cobrar.



No caminho

apressam-se os pais da geração espantalho

que a lua acoberta

senil.


(XI)



As chaves nunca estão onde deveriam estar

o que significa que as pessoas

também não estão onde deveriam estar.

As pessoas acreditam muito nessa coisa

de inviolabilidade de domicílio.

O problema é que entrar ou sair

requer prévio conhecimento de casa.



Há um mesmo um apartamento inteirinho, tudo no lugar.

A esperança de uma panela de pressão explodindo

e tudo se incendiando há de se renovar amanhã.



Ou talvez amanhã prefira vê-lo totalmente saqueado

os discos e a televisão invisíveis

os vigilantes do meu sono atônitos

quando da queixa-crime.


Nada disso.

Quem sabe uma invasão por parte de micro-homens

de algum micro-cosmo?

Ou mesmo por parte dos homens da lei?


O destino de um apartamento é algo de muito misterioso.



(XII)



Privada e privacidade.

Cantar, desafinar, brincar, fazer coisas

tudo que se aprendeu como atentado ao pudor.

Água, um sabonete que limpe, desinfete

mate germes, desodorize e ainda perfume.



Água, água-de-cheiro, água de colônia, água benta

a eterna farsa da fêmea naturalmente perfumada

assim se insinua a mulher que sabe o que quer

– sorria, você está sendo filmada –

não te dão tranqüilidade.



E o espelhinho a instigar transgressões

a recitar punições

minha cara pálida

procurando minha cara-pálida

no espião que possui até a estratégia do lugar.



Disfarçar, rápido!

mostrar-lhe a língua vermelha, uma careta horrorosa

desencadear uma série de contorções faciais

mil personalidades hão de confundir o inquiridor.



É isso, a multiplicidade de crimes e criminosos

a confusão da identificação

e depois

o perdão geral pra culpa geral.



(XIII)



Decisões melhores e piores já foram tomadas antes.

Usar o mesmo vestido amarelo

aquele que foi massacrado durante o dia

e muito possivelmente deve estar recendendo a suor

e sanguemenstrual pode parecer falta de imaginação

ou uma tática pobreza.



Como explicar que o amarelo consegue manter um equilíbrio

entre o eu exterior e o eu interior, o ying e o yang

e que além disso é o único vestido amarelo que eu tenho

e que é fundamental vestir qualquer coisa que seja?


(O arquivo da memória mostra mães e avós envolvendo os corpos com sedas e tafetás, protegendo seios e coxas dos vampiros das sextas-feiras fotos plissadas nos álbuns do erotismo familiar.)

Uma explicação peculiar:

tudo não passa de uma genética loucura circular

inclusive a frigidez de permeio.



(XIV)



A sexta-feira é sangüínea.

Qualquer um

pode pretender caçar bruxas

matar amantes em encruzilhadas

trepar mulheres infantis

ouvir poetas malcasados

consolar bichas em declínio

conversar com as putas velhas das cercanias mesmo

sair pela tangente

instituir a poliandria

assistir a performance do john wayne

usar um vestido amarelo

viabilizar o apocalipse

fazer declaração de bens

brincar com a própria adrenalina

psicanalisar a raça

resistir

converter

rebater

contestar

ceder

repicar

transcender.


Sexta-feira se repete em sociedades fechadas

enquanto um furacão

surpreende os habitantes

de uma ilha perdida no Pacífico.



(XV)



Lá fora é noite degenerada.

O sul pode ser divertido, o norte pode levar à morte.


A cidade arquitetada promove encontros

há um homem esperando uma mulher

há uma mulher esperando um qualquer

há uma nova moda vestindo os rapazinhos e as menininhas

a repressão sofisticada faz com que as pessoas

girem em torno dos mesmo lugares

fronteiras abstratas funcionam satisfatoriamente.


Há uma festa.


Festa: comemoração

solenidade

regozijo

divertimento

e quem sabe rascunho de uma nova bíblia.

Os animais caem n’água.


(XVI)



Festa? É uma festa?

Necessariamente não.

(Não se pode agradar a gregos e troianos,

ou um ou outro.)



Se bem que na pauta é festa,

delírio coletivo,

bacânticobacará

ou seita de ali-babá

com seus mais de quarenta ladrões.



Quem consome angel dust?

Quem faz masturbação lisérgica?

Quem está armado de pênis e psi?

Quem sabe do contracanto, da contradança

quem sabe contrariar a alegria?

E fazer poesia?

Catarse na noite dos tiros?

Amor terno e ereto, torto ou certo?

Voltar pra mulher amiga, banida?

Quem sabe ter mais sentido

desobedecer a sina?


Momentos de valentia.

Reina a calma em todo o brejo.

Dez, quinze, vinte anos de porre.

Experiências ego sum qui sum.



(XVII)



A cidade ainda oferece sopa de cebola e gonorréia.

Vítima é vítima.

É prudente não dirigir embriagado

é civismo respeitar o letreiro da coca-cola

é distração atropelar o indivíduo

é tropical se safar dessa

e colocar o débito na conta do diabo

é hilariante dar nó no rabo desse mesmo diabo

é besteira se preocupar com o abastecimento da manga rosa

é fim de noite

é fim de qualquer coisa

o próximo instante pode ser o mar invadindo o sertão

ou cuba parindo filhos do tio sam.



(XVIII)



É preciso chorar

mas está acontecendo a melhor sopa da cidade

a melhor da tua vida talvez.

E as lágrimas se disfarçam com um chiado qualquer

um som que reproduza sucção

se não é a vida uma onomatopéia.



O garçom alcooliza a minha

a tua

a nossa desgraça

(pra que rimar amor e dor?)

e nos embebedamos:

um brinde

ao partido brahma chopp

traga a cachaça, vou berrar na praça

o meu amor que eu tenho converteram em delito

sou apenas uma mulher velha

lamentarei sempre minha juventude

moreno bonito

impeachment no bar do poeta

o diabo não sabe mais

façam jogo, senhores

olha o urubu no telhado

qualquer corpo apanha

perdão – se houvera

o rei morreu

nas intermináveis filas do sexo

levado a cabo por sutis manobras

joão amava maria

o olhar ultramarino sonso

é porta fechada pra tua passagem

mira que ira

que eu quisera ser a mulher amada

eu já te amo como sinfonia

que aí no Leme o mar é teu

sou uma mulher fraturada

queria era morrer sem arrependimento

olhando pra você retilínea

tu me matas, tu me consolas.

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